STJ terá que uniformizar entendimento sobre aplicação da Lei do Distrato
Fonte: Valor Econômico
A 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) terá que uniformizar o
entendimento da Corte sobre qual legislação deve ser aplicada em casos de
desistência de compra de terreno sem edificação. A discussão envolve negócios
realizados após a edição da Lei do Distrato (nº 13.786, de 2018). Os ministros
da 3ª e 4ª Turmas divergem sobre o assunto.
Para a 3ª Turma, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o que
beneficia o comprador. Já para a 4ª Turma, vale a Lei do Distrato, que é mais
favorável às empresas. Ambas as decisões não valem para imóveis comprados
na planta.
Conforme a 3ª Turma, por unanimidade, aplica-se o CDC. Assim, se o
consumidor desistir da compra de um terreno ainda sem construção, as
empresas imobiliárias que compram grandes terrenos para vender os lotes
(loteadoras) devem reter até 25% do valor pago e devolver o restante à vista.
Foram analisados quatro recursos em conjunto referentes a negócios realizados
após a Lei do Distrato (REsp 2106548, REsp 2107422, REsp 2111681 e REsp
2117412).
Prevaleceu o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi. Segundo ela, a edição
da nova lei não pode inviabilizar a previsão dos artigos 51 e 53 do CDC. Os
dispositivos preveem que cláusulas abusivas são nulas, entre elas a que preveja
a perda total das parcelas pagas pelo consumidor com o fim de um contrato de
compra e venda de imóvel.
O comprador também fica liberado de pagar a taxa de fruição, de acordo com
a ministra, porque ela não é devida quando não há edificação para ser usada,
conforme a jurisprudência do STJ (REsp 2049633, REsp 1896690). A taxa é
cobrada até o equivalente a 0,75% sobre o valor atualizado do contrato por
eventual utilização do imóvel ao longo do período de financiamento.
Ficaram vencidos os ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro. O
primeiro defendeu as disposições da Lei do Distrato - que sejam descontados
da restituição 10% do valor total do contrato, a taxa de fruição, os juros por
atraso, IPTU e contribuições condominiais. O segundo concordou com a
retenção de 25% do valor pago, porém defendeu que sejam descontados os
juros por atraso, as despesas tributárias e as condominiais. O voto vencedor
não se manifestou sobre esses descontos.
Na 4ª Turma, por outro lado, prevaleceu a previsão da Lei do Distrato. A
maioria dos ministros decidiu que a empresa deve reter 10% do valor total do
contrato, pode devolver o restante em até dez parcelas e ainda cobrar 0,75% de
taxa de fruição. Foi mantido, no caso, acórdão do Tribunal de Justiça de São
Paulo (TJSP).
Conforme a relatora, Isabel Gallotti, desde a edição da Lei do Distrato não é
mais possível aplicar o entendimento anterior do tribunal, de que a taxa pela
ocupação só valia quando houvesse edificação (REsp 2104086). Além disso,
segundo ela, a Lei do Distrato não ofende o CDC e suas disposições devem
prevalecer.
“Não se verifica ofensa ao artigo 53 do CDC, pois não há previsão de cláusula
contratual que estabeleça a perda total das prestações pagas em benefício do
loteador”, diz ela, no voto. “Na verdade, o contrato expressamente previu a
devolução das quantias pagas com os descontos permitidos na lei em vigor
quando de sua celebração.”
O advogado que defendeu o consumidor em um dos processos julgados pela
3ª Turma, Antônio Carlos Tessitore, aponta que, embora as ações julgadas por
este colegiado tenham focado nos casos de terrenos sem edificação, os
ministros sinalizaram que, mesmo após a edição da Lei do Distrato, as previsões
do CDC devem continuar prevalecendo. “As alterações feitas pela Lei do
Distrato devem ser analisadas com base no Código de Defesa do Consumidor
e, havendo algum conflito, prevalece o CDC nas relações de consumo”, afirma.
Para Tessitore, o entendimento resolve um desequilíbrio trazido pela Lei do
Distrato. “Quando o consumidor é inadimplente, a loteadora retoma o bem e
faz uma nova venda, provavelmente com valorização. Como a Lei do Distrato
estabelece a devolução sobre o valor do contrato, era muito comum que, em
caso de rompimento do contrato, o comprador perdesse tudo e até ficasse
devendo. A decisão do STJ veio pacificar esse assunto”, diz.
Já para as loteadoras, o entendimento da 3ª Turma pode até inviabilizar os
negócios, segundo especialistas. A advogada Kelly Durazzo explica que, embora
não entreguem unidades habitacionais prontas, as loteadoras são responsáveis
por toda a infraestrutura necessária para as edificações, que custam milhões de
reais. E as empresas se financiam com recursos próprios e o pagamento dos
consumidores.
“Eu não posso fatiar uma gleba de 200 mil metros quadrados e vender em
lotes”, afirma. “A prefeitura exige obras de infraestrutura, com calçadas, esgoto,
rua, iluminação pública, drenagem, saneamento básico. E o loteador obedece a
um cronograma de obras, entregando normalmente com seguro garantia ou os
próprios lotes em caução.”
É por isso que, embora o comprador não tenha como morar no terreno, as
loteadoras defendem a cobrança da taxa de fruição durante o período de obras,
diz Kelly. “Quem tem a posse é quem comprou, a empresa não pode impor a
forma como o terreno vai ser usado.”
Caio Portugal, presidente da Associação das Empresas de Loteamento e
Desenvolvimento Urbano (Aelo), destaca que o setor é responsável por boa
parte da infraestrutura urbana no país, mas não tem acesso aos financiamentos
para construção, como os recursos do FGTS e a maior parte do crédito do
Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).
“Parte do dinheiro que a loteadora recebe é para infraestrutura, ou payback do
investimento, ou o lucro da empresa”, afirma Portugal. “Interferir nesse tipo de
regra traz mais riscos para o negócio, que não consegue ter mais
previsibilidade.”
A entidade calcula que o setor movimenta cerca de R$ 7 bilhões ao ano.
Segundo Portugal, cabe ao próprio mercado lidar com as situações de
inadimplemento. “A partir do momento em que os nossos contratos passem a
ser uma simples opção de compra e venda, o nosso setor vai deixar de existir”,
sustenta.
A questão poderá ser definida pela 2ª Seção do STJ se alguma das partes
apresentar recurso (embargos de divergência), que visa uniformizar a
jurisprudência conflitante entre as turmas de direito privado.
No ano de 2019, a 2ª Seção definiu o posicionamento do tribunal superior sobre
contratos de compra e venda de terrenos sem edificação firmados antes da
edição da Lei do Distrato. Na ocasião, concluiu pela aplicação do Código de
Defesa do Consumidor (REsp 1723519).